Há serestas antigas nestas águas do velho Pajeú, bêbado e lento, a correr sob as sombras seculares de árvores velhas e a cantarolar cantos de guerra com sotaque indígena, entre tombos e quedas e risadas.
(Ciro Colares)
Riacho Pajeú fotografado por Maria das Fadas
(Ciro Colares)
Riacho Pajeú fotografado por Maria das Fadas
Lá na nascente, onde os olhos d’água do riacho se enchem apesar do asfalto, alguns moradores mais antigos ainda lembram do Pajeú em flor, bem antes de ele ser aterrado vivo. “Antigamente a água corria, tinha uma pontezinha de madeira, nessa época não tinha nem calçada”, descreve dona Glaci Simões, 60 anos, que vive na rua Rocha Lima, Aldeota, desde 1957 ou 1958, não lembra bem – “já faz muito tempo”.
Hoje não há mais pontes porque também não há mais águas expostas no trecho da Aldeota por onde o riacho passava. O Pajeú, que um dia decidiu a localização de Fortaleza – a cidade se desenvolveu ao redor do Forte de Schoonenborch, erguido naquela colina por causa do fácil acesso à água potável –, corre agora por baixo das vias da cidade, dentro de canais ou sufocado pela areia do aterramento.
Com menos de cinco quilômetros de extensão, o pequeno rio nasce nas imediações das ruas Silva Paulet, José Vilar e Bárbara de Alencar, no bairro Aldeota. De lá, segue canalizado cortando a Heráclito Graça, avenida que, numa observação mais atenta, forma o desenho de um leito que não existe mais.
Em alguns pontos, porém, ele nos lembra que ainda vive. O Pajeú passa a céu aberto em trechos como o Parque Pajeú, próximo à Câmara dos Dirigentes Lojistas, o Palácio do Bispo, antiga sede da Prefeitura, e atrás do Mercado Central. A partir daí, some novamente debaixo da terra e só reaparece na forma indistinguível do oceano inteiro da Praia Formosa – afinal, todas as águas correntes são caminho para o mar.
Às margens do riacho, encontramos Gleiciane Braga, que às vezes leva o filho Guilherme, de nove anos, para brincar e correr no Parque Pajeú. Ela é gari, trabalha andando pela cidade inteira, mas não sabe o que é aquele filete d’água que corta o grande jardim. “É um esgoto, não é não?”, exagera Gleiciane, grávida do segundo filho. Apesar disso, o que a faz sair do Conjunto Palmeiras até o outro lado da cidade só para assistir a um fim de tarde é a inexplicável sensação de tranquilidade e paz que o ambiente do Parque lhe transmite. É o Pajeú, que mesmo desfigurado mantém sua essência de fazer renascer o sossego nesta urbe de asfalto e pressa.
As intervenções no riacho foram iniciadas ainda no século XIX, segundo alguns escassos registros. A obra de canalização de maior destaque, porém, foi realizada no início da década de 1980, numa extensão de 3.360 metros. Documentos oficiais da Prefeitura de Fortaleza dão conta de que, nesse processo, o leito original foi modificado e o curso desviado por causa das edificações já existentes, evitando os altos custos das indenizações.
Mas quando chove muito, aquelas águas mortas pela metade resolvem vir à tona por cima do calçamento e de qualquer maneira. Talvez fosse até mais fácil se ainda houvesse pontes de madeira, evitando a água na cintura, batendo no meio do muro da rua José Vilar. É o retorno do Pajeú que não esquece, a natureza sem entender que o espaço já não é de todo seu.
A avenida Heráclito Graça, antiga estrada da correnteza, também é recorrente nos registros de enchente e alagamento. “Ali era o curso do riacho, e ele tinha determinado espaço que fazia parte da drenagem natural. A partir do momento que esse espaço foi aterrado, foi pavimentado ou mesmo canalizado, quando chove não há a capacidade física de absorver toda a água, então a rua inunda”, pormenoriza o professor de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) Edson Vicente, o Cacau, pós-doutor em Planejamento e Geoecologia da Paisagem.
Dentro dos canais, as paredes de concreto truncam e limitam o correr livre e fluido das águas ancestrais: “O rio tem toda uma dinâmica. Ele serpenteia, um ano ele passa por um lado, no outro passa por outro lado. Depois que o rio tem as seções fixas, esse movimento deixa de existir”, contrapõe o professor de Hidráulica do curso de Engenharia Civil da Unifor, Rogério Campos.
A situação do Pajeú, sufocado pela expansão urbana, levanta questionamentos maiores sobre o futuro de rios, riachos e lagoas em meio a tanto asfalto e concreto. O professor do curso de Geografia da UFC, Jeovah Meireles, defende que a conservação desses ecossistemas está relacionada à gestão da cidade sem o domínio de especuladores imobiliários. “Outra ação primordial é a de saneamento básico, estratégico para a qualidade dos ecossistemas urbanos e para a saúde coletiva”, completa.
A convivência entre bens hídricos e empreendimentos justificados pelo crescimento da cidade, porém, nem sempre acontece de forma harmônica. Problemas como lançamento irregular de esgotos de imóveis e descuido com o destino adequado do lixo são atitudes que ameaçam a sobrevivência de rios e riachos de Fortaleza. Rogério Campos também aponta para a reversão desse quadro com investimentos em coleta e tratamento de esgoto. “Mas essa não é uma questão exclusiva do poder público, é do habitante também. Ele precisa ser educado. Apesar de termos uma soma de coleta de lixo que cobre a cidade praticamente toda, joga-se muito lixo nos rios em Fortaleza”, avalia.
De acordo com a Célula de Controle Ambiental da Secretaria Muncipal de Meio Ambiente e Controle Urbano (Semam), as melhorias para o riacho estão contempladas no Programa de Despoluição da Orla Marítima de Fortaleza, atualmente em execução. Segundo o órgão, até agora foram realizadas visitas em imóveis compreendidos entre a Praia de Iracema e o Mercado dos Peixes, no Mucuripe. O trabalho feito em parceria com a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) verificou que 101 imóveis continuam lançando esgoto na Orla de Fortaleza, apesar de já terem sido notificados quanto à irregularidade.
O Pajeú faz parte da Bacia Vertente Marítima, composta ainda pelos riachos Jacarecanga, Maceió e Papicu. Localizada ao longo da orla, essa bacia é uma das mais pressionadas pela expansão da cidade. “O que poderia ser feito era estabelecer os limites da APP (Área de Preservação Permanente). Estabelecendo esses limites e fazendo cumprir a lei, o manancial hídrico é beneficiado diretamente”, reflete o geógrafo Edson Vicente.
Com os aterramentos e canalizações feitos ao longo das décadas, o Pajeú – ou Rio do Pajé, em tupi – se afoga na modernidade que quer se desfazer daquelas águas de cura. Segundo Jeovah Meireles, a cidade lutou para extinguir um riacho que gerava problemas para avenidas e edifícios a serem levantados. “Isso sem levar em conta a importância de um sistema ambiental fundamental para a brisa marinha que percorria seu canal, amenizando o clima daquele setor da cidade. Sem levar em conta o microclima das árvores centenárias ao longo do seu leito, os bosques de árvores frutíferas e a sobra dos oitizeiros”, lamenta.
Já para Rogério Campos, o processo de urbanização é inevitável e atinge todos os rios da Região Metropolitana de Fortaleza. “Só o Cocó, por ser muito caudoloso, consegue manter o leito natural”, ressalta. Ainda segundo o professor de Hidráulica, a canalização artificial, com uso de materiais como concreto, é feita para que o riacho receba águas da chuva numa área menor. “Você tem um rio passando por uma largura menor. Em princípio, isso não causa inundação, desde que tenha sido convenientemente dimensionada a variação do tamanho do rio nos períodos de seca e cheia”, alerta.
Apesar de o Pajeú passar por regiões de alto grau de urbanização – Aldeota e Centro –, a obra de canalização do rio também é criticada pelo Inventário Ambiental de Fortaleza, resultado de um levantamento feito pela Prefeitura em 2002 e 2003. O documento aponta que “a canalização do recurso em diversos trechos evidencia o descaso para com um valioso patrimônio histórico-ambiental da cidade”.
Além da questão ambiental, portanto, está claro que a relevância histórica do Pajeú também deve ser levada em conta na defesa do riacho que vence o asfalto na eterna peleja em alcançar o mar. “É preciso haver uma educação para a compreensão de que a memória é um direito constituinte da cidadania”, defende o professor do Departamento de História da UFC, Sebastião Rogério Ponte. O historiador diz não concordar com a ideia de que somos um povo destituído de memória. Como argumento, ele cita a vasta bibliografia de memorialistas da cidade – como Otacílio de Azevedo e Raimundo Menezes, por exemplo. “Pedir que os cidadãos tenham um apego pela memória sem que ela esteja presente na sua educação é querer demais”, arremata.
Do quase-rio de outrora restou um filete d’água cujo nome não nos deixa esquecer imemoriais cantos de guerra com sotaque indígena, como escreve o cronista Ciro Colares. Restaram também as lembranças dos mais antigos que, quando meninos, pescavam piabas ou roubavam frutas ribeiras nas árvores, ouviam o canto das lavadeiras. No meio da rua Rocha Lima, um trecho mais baixo corresponde à enorme cacimba que um dia serviu a todos o de beber. “Aqui nunca faltou água”, afiança Glaci Simões, que ia com os baldes na mão até o poço.
E os olhos d’água do riacho continuam cheios, agora um lamento sob o asfalto.
Castelo de areia às margens do Pajeú
O Pajeú um dia demarcou o ponto no qual o antigo povoado que deu origem a Fortaleza começou a se desenvolver, no século XVII. O Forte de Schoonenborch, construído por Matias Beck sobre a colina Marajaitiba, necessitava de água doce e limpa. O casamento entre água potável abundante e local elevado – que facilitava uma melhor visão de navios inimigos – fizeram do lugar onde hoje se localiza a 10a Região Militar um ponto ideal. “O Matias Beck poderia ter escolhido o Cocó, mais caudaloso, mas preferiu o Pajeú”, enfatiza o professor do Departamento de História da UFC, Sebastião Rogério Ponte. A região era tão propícia ao ancoramento de navios que, em local próximo, seria formado o primeiro porto de Fortaleza, na Ponte Metálica.
A construção do Schonnerborch em 1649 contribuiu para a efetivação da conquista holandesa no Ceará. Os 287 homens comandados por Matias Beck tentavam, pela segunda vez, conquistar a região. Expulsos pelos portugueses na primeira tentativa, os holandeses voltaram ávidos por encontrar a prata que os índios diziam haver na montanha de Itarema, próxima ao Mucuripe.
Quando aqui chegaram pela segunda vez, os holandeses encontraram o que havia restado do antigo Forte São Sebastião, construído às margens do Rio Ceará pelos portugueses e destruído pelos índios. Mas o local não foi utilizado para a construção do novo forte. “Talvez a lembrança funérea que trazia a região onde os portugueses construíram o São Sebastião tenha levado Matias Beck a não construir o Forte Schonnenborch no Rio Ceará. Construir no mesmo lugar traria mau augoro”, opina Sebastião.
FONTE: Jornal O Estado, 27 de abril de 2009
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